O inverno de uma mãe em filme: 11 cenas em loop


Este tem sido um longo inverno. Longo porque tudo se acumula nos dias, sobretudo o stress de ter de gerir tudo: trabalho, casa, brincadeiras e as doenças, as putas das doenças do inverno do inferno. Entre otites, piolhos, viroses, varicelas, bronquiolites já tive direito a tudo e às tantas já dou por mim a antecipar, numa atitude entre o sadomaso e o stress pós traumático, tudo o que vai acontecer, tipo filme rasca de hollywood!

Cena 1 - O beijinho de boa noite nas têmporas que me diz 36,7º. Juro que consigo distinguir entre 36,5º e ao 36,7º. Tenho cerca de cinco termómetros, até um daqueles que se apontam para dentro da orelha e apitam com um veredicto tão sólido quanto os números iluminados do visor. Esse em particular ia-me levando à loucura. Media a temperatura de 30 em 30 segundos e a variação ia dos 35,5º aos 39,5º. Os outros levavam uma eternidade e uma eternidade é muito tempo para uma bebé que está desconfortável. Treinei-me tanto que agora consigo medir o que é preciso com os lábios e a experiência já me ensinou que 36,7º é sinónimo de que vem lá porcaria.

Cena 2 - Depois a análise dos sintomas: é o quê? respiração? garganta? ouvidos? dentes… dentes pode ser sempre! Ui? o que é isto? manchas? Vamos ao médico? Não. Espera três dias e se a febre não passar é que falamos com a pediatra. Entretanto liga-se para a saúde 24, para a fisioterapia e para o médico do seguro. De forma alternada. Para não acharem que estamos loucos. Mas estamos… um bocadinho.

Cena 3 - O que mais irrita? Termos de ser o mediadores entre a miopia dos médicos e a hipervisão das educadoras: aquela mancha com cerca de três milímetros na bochecha “pode” não ser nada e os médicos dão-nos meia benção. Mas mal a educadora passa num raio de 3km da criança, cheira (só pode cheirar!) a dita mancha e logo diagnostica um rol de possíveis enfermidades altamente contagiosas e voltamos para casa.

Cena 4 - Entretanto a negação. Ainda agora acabou um antibiótico/teve aquela virose/ não pode ser mais nada! Não pode! Fizemos tudo: lavar nariz mil vezes ao dia, dar água com fartura, as vitaminas, as orações, protegemos do frio/do calor/do ar da rua/do ar de casa/do raio que o parta!! O que pode ser agora! Dentes. Ou creche. Ou dentes que nascem na creche.

Cena 5 - Nisto tudo o nosso corpo vira cama… apesar de não ir à cama. A miúda dorme sobre o peito, entre toalhas frias e mantas quentes num outro equilíbrio difícil de conseguir mas que de dia parece menos impossível.

Cena 6 - No meio disto tudo, felizmente, nada é muito grave. Agiganta-se com o nosso cansaço e com o nosso medo. Quantas vezes este inverno já tive a certeza que estraguei as garotas. Aquela sensação de que se estragou aquela coisa de que mais gostamos, que esperamos tanto para ter, que tratamos com mil cuidados e num tropeção lá estragamos tudo. Mas gere-se, até quando a mais velha se junta à mais nova ou vice-versa.

Cena 7 - O malabarismo é mais que muito grande: põem-se as duas no carro. Sacam-se mil cartões, do seguro, de identidade, boletins de vacinas e do caralho mais velho e tenta-se explicar o essencial ao enfermeiro enquanto uma chora e a outra quer falar e pede atenção. Repete-se a dose no médico. A estratégia é a mesma de quando damos conta que estamos a ficar bêbedas: fingimos o melhor possível que não estamos cansadas, não estamos fartas, não estamos à beira da loucura, do choro e do grito. Em vez disso, abrimos muito os olhos, mantemos o rosto sereno e dizemos só aquilo que temos a certeza que não nos vai denunciar: “uhm, uhm”, “sim, sim”, “claro, claro”. Aos pares para parecermos seguras. (Abençoada juventude que me permitiu treinar a cara de sóbria mesmo depois de meia garrafa de Golden strike).

Cena 8 - Chegamos a casa e ainda não dá para desabar. Vamos lá processar tudo e escrever as indicações antes da próxima crise de choro, de atenção. Tudo legítimo. Antes do banho, do jantar do relato do dia entre garfadas que entram a custo, numas bocas por saturação, noutras por falta de mimo.

Cena 9 - Durante a noite, com uma nos braços e a outra na cama, depois da versão resumida e pouco sentida da história de dormir, voltamos a passar a vida em perspectiva e a culparmo-nos porque, enquanto medimos a febre, pensamos na merda que estamos a fazer no trabalho. E culpamo-nos mais: como é que uma e outra coisa podem conviver no mesmo momento? Como é que se trabalha sem dormir, sem coração porque estão todos a bater fora do peito e a descompasso?

Cena 10 - Trabalhar será outra coisa que fazemos mal e porcamente nestes dias infinitos… Mas mais uma vez, abrimos muito os olhos, mantemos a cara serena a voz tranquila, fingimos que está tudo controlado e esperamos que não perguntem para não ter de se repetir mais uma vez que as miúdas estão mais ou menos. Afinal vida continua. Mesmo sem que sem dormir. Mesmo sem os nossos corações nas nossas mãos.

Cena 11 - Termina o filme com a entrada em cena do herói disto tudo, aquele que aparece quando percebemos que já não conseguimos salvar mais nada. Entra a Mãe. Precisamos de colo que, não sendo para nós, é como se fosse e sempre nos aquieta um bocadinho mais a alma. É para isso que (também) servimos.

Comentários

  1. Xiça rapariga.... mudem-se aqui para acosta alentejana!
    os meus rapazes lá têm ranhos e dentes a nascer... mas mais nada!
    mudem para cá... ou pelo menos venham apanhar sol e vento nas trombas, molhar os pãezinhos com esta abençoada agua salgada e ver se afastam a bicharada toda!!

    mil beijos e força ai!

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