Da greve


Correndo o risco de ser excomungada da sociedade, não me parece que a esta altura do campeonato sirva de alguma coisa estar a fazer greve. Além do mais, revolve-me um bocado as entranhas... É que para se poder fazer greve é preciso ter um emprego, daqueles que dão dinheiro todos os meses e que prevêem regalias sociais... e isso, na minha geração é raro. E a verdade é que posso trabalhar dias infinitos, sem direito a fins de semana, feriados e o mais que houver, que continuo a não ter emprego. Mais, até posso fazer isso a dobrar, em mais do que um lugar, em cidades diferentes separadas por muitos quilómetros que têm que ser pagos do meu bolso, que nem assim posso dizer que tenho um emprego. Por isso custa-me, que todos os "tachos" e "panelas"*, saiam à rua (sendo que a maioria opta pela via metafórica e fica mas é em casa a protestar no aconchego das mantas, porque este tempo não chama à luta) para barafustar com quem, por uma ou outra via lhes arranjou um cantinho ao sol, quando deviam era estar a levantar as mãozinhas para o céu... e já agora a trabalhar!


No dia, em que perante um cenário económico como o que vivemos hoje, a população se mobilize para se revoltar/manifestar trabalhando e eventualmente usar o dinheiro desse dia como forma de minimizar a desgraçada da crise (que já não tem costas para mais) alinho!! Gosto dos chamados estalos de luva branca. [Já estou a ouvir os impropérios dirigidos à minha pessoa]. Até lá, acho que é um desperdício de tempo ficar de braços cruzados ou a agitar bandeiras, o que no final se vai traduzir num dia de mais trânsito muitas reportagens irritantes, maior despesa que vamos todos ter que pagar mantendo tudo como estava antes.


Agora vou ali ter uma reunião, corrigir frequências, preparar aulas, passar os olhos pela tese, encher uma carrinha de mudanças e fazer 400km para comemorar a greve... trabalhando!

* O problema da generalização é a injustiça. Reconheço que há muito boa gente que tem trabalho por mérito próprio e que se vai manifestar.

Comentários

  1. Pegando na tua nota de rodapé:

    sou trabalhadora independente - que é o nome bonito que dão hoje em dia à escravatura. Tenho um emprego que até paga decentemente (mas porque das 24h que o dia tem, trabalho 14) e uns chefes que são porreiros, mas isso não invalida que tenha de ser penalizada com um sistema arcaico de recibos que me impede de gozar a totalidade dos meus rendimentos e que, por outro lado, me impede de tirar férias pagas, de ficar doente se não tiver dinheiro para esse «luxo», de ficar desempregada, porque não vou ter os papás ou os maridinhos para se chegarem à frente e os recibos tiram direito a subsídios, mas, curiosamente, não me tiram o «direito» de pagar impostos e segurança social.

    Dos 5 milhões de gente que trabalha em Portugal, os precários são 1/3. É por isso que, embora trabalhe hoje as 14h com a mesma produtividade de sempre, vou tirar meia hora (que compensarei, não posso perder dinheiro, de que preciso para sustentar o Estado) para dar voz ao meu descontento. Porque os números, às vezes, fazem a força.

    (Mas é claro que concordo com o teu comentário sobre a gente alapada, que apenas usa as greves como o mesmo pretexto com que usa tolerâncias pelo Papa ou pelo Obama.)

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  2. Querida, lamento, mas eu só agora é que pude vir cá dizer que concordo. Não que tenha passado a manhã indecisa, a ver se acenava que sim ou te excomungava como a maioria dos demais. Não. Só que fiquei a preparar arguições até às duas da manhã, levantei-me às sete, enfiei-me numa sala às oito para ser implacável com gente que acabou hoje um curso e tem de saber o que a vida custa, saí de lá às onze e entrei numa reunião onde me disseram que vão ver se me contratam para o ano durante o ano todo ou se será na mesma só um semestre (e, portanto, na segunda parte do ano continuarei com aquela vida flauteada de ter menos um emprego: já só tenho dois e uma tese de doutoramento), até que saí dessa reunião e dei uma aula até às duas. Agora vim aqui concordar, mas tem de ser rápido, porque vou fazer a mala para ir para Lisboa, porque estou lá em trabalho até sexta à noite. E, se tiver tempo, desculpa, não, não vou adiantar mais aqui, vou só adiantar as aulas da próxima semana e corrigir a segunda leva de exames e que dei ontem aos alunos até à meia noite. Mas sim, estou de greve. Optei por almoçar um iogurte... que não tenho forças para cozinhar.
    Beijinho*

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  3. Rachelet: estar a recibos é das piores coisinhas que pode acontecer (dentro do bom que é o estar a trabalhar). De facto é estar na base da cadeia alimentar... no sentido que são os trabalhadores independentes que "alimentam" o restante pessoal e tudo isto não "comendo" nada!!

    R: a verdade é que se fizesses greve - no sentido de ficares em casinha, papinho para o ar, sem fazer nenhum - quem se lixava eram os mexilhões dos teus alunos!

    Não estou contra a greve, claro que não! Foi um direito que foi conquistado sobre o sofrimento de muito boa gente! Mas não concordo com a hipocrisia e o aproveitamento que se tem vindo a fazer...

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